Crônicas de Arthdal – 2ª temporada

Guerra, profecias e uma capital sitiada
Introdução: a fantasia coreana que quer ser épica
Quando Crônicas de Arthdal chegou à Netflix, muita gente viu nela a promessa de uma fantasia televisiva de grande fôlego, daquelas que combinam intrigas de poder, mitologias antigas e batalhas que mudam o destino de um povo. A comparação com produções gigantes foi inevitável e, em certa medida, injusta: Arthdal sempre quis traçar seu próprio caminho, a partir de uma cosmogonia original e de conflitos que misturam espiritualidade, política e sobrevivência. A segunda temporada (que mudou de casa, agora no Disney Plus) confirma essa ambição, dá um salto temporal de oito anos e coloca todo o tabuleiro em xeque, com Eunseom marchando para unir tribos, Tagon fechando o punho sobre a capital e Tanya assumindo um papel determinante na fé de um continente.
Mais concisa do que a primeira (agora com 12 episódios), a nova fase adota um ritmo mais acelerado, privilegia sequências de ação melhor coreografadas e investe em uma narrativa que respira guerra por todos os flancos. Ainda assim, permanece fiel ao DNA da série: mundos em colisão, burocracias que sustentam impérios frágeis e o peso de profecias que prometem libertação, mas cobram caro de quem tenta cumpri-las. O resultado é uma temporada envolvente, visualmente segura e dramaturgicamente ambiciosa, embora nem sempre consistente — sobretudo perto do desfecho, que flerta com ganchos para uma continuação sem oferecer catarse completa.
Contexto: o que a primeira temporada deixou na mesa
A primeira temporada apresentou a terra de Arthdal, seus clãs, tribos e facções. Vimos Eunseom surgir como figura profética, Tanya ascender das raízes da Tribo Wahan para o centro do Grande Santuário e Tagon consolidar o poder com estratégias brutais — tudo isso mediado por um mundo que mistura o humano com o mítico, especialmente por meio dos Neanthals, e por uma teia política que envolve burocratas com agendas próprias. Essa construção de universo foi robusta, mas às vezes excessivamente fragmentada, com “partes” que exigiam fôlego e paciência.
Oito anos depois, começamos a 2ª temporada com forças claramente delineadas: de um lado, Eunseom busca unificar as tribos e libertar as regiões que sofrem sob a capital; de outro, Tagon transforma Arthdal numa máquina militar e administrativa rígida, reforçada por intrigas palacianas em que Taealha atua como arquiteta de oportunidades. Saya, por sua vez, emerge como uma peça imprevisível no tabuleiro militar, e Tanya assume a liderança espiritual do povo, com a responsabilidade de manter coesa a fé que sustenta alianças e motiva revoltas.
A nova premissa: urgência, escopo e um tabuleiro tenso
A 2ª temporada não perde tempo. Tudo é mais urgente: as marchas são mais rápidas, os conflitos despontam sem aviso e as consequências chegam logo depois. Eunseom não é mais uma promessa — é um líder em movimento, carismático, disposto a negociar, inspirar e lutar. Tagon, por outro lado, é perigoso e imprevisível, o que torna cada decisão dele um potencial terremoto político. Entre eles, Taealha permanece afiada, pronta para sabotar e cooptar quem for necessário, enquanto Tanya precisa conciliar o sagrado com o pragmático de uma guerra longa que cobra sacrifícios do rebanho e da pastora.
Esse conjunto transforma a série num xadrez de alta voltagem. E, como em todo xadrez tenso, há momentos em que as peças parecem andar rápido demais. Ainda assim, o desenho de tensões funciona: os episódios avançam com objetivo, as alianças se rearranjam de forma crível e os interesses dos burocratas e de outras elites internas e externas mantêm a chama da instabilidade sempre acesa.
Ritmo e estrutura: 12 episódios que favorecem a ação
A decisão de condensar a temporada em 12 capítulos faz diferença. O formato reduzido elimina gordura, reduz o vai-e-vem de tramas paralelas e mantém o foco nos eixos centrais: a campanha de Eunseom, as manobras de Tagon, a diplomacia espiritual de Tanya e as intrigas de Taealha. Em consequência, a série respira batalhas mais frequentes e intercala os confrontos com blocos de negociação política, o que ajuda a escalonar tensão.
Ainda existem subtramas complexas, especialmente as que envolvem a história dos Neanthals e a hierarquia dos burocratas dos dois lados, mas agora elas aparecem encaixadas a serviço da guerra maior — e não como desvios extensos. Mesmo assim, quem acompanha com lupa vai notar atalhos de roteiro, decisões que dependem de conveniências e personagens tomando rumos irracionais em pontos-chave. Nada que imploda a temporada, mas o suficiente para deixar marcas, principalmente no terceiro ato.
Personagens em foco: arquétipos, dilemas e contradições
Eunseom: o líder que precisou crescer
Eunseom finalmente ocupa o lugar que a série preparou para ele. O arco é convincente porque equilibra humanidade e propósito: ele não é apenas um guerreiro, é um agregador capaz de unir tribos diferentes sem apagar suas identidades. Sua liderança flui da escuta, da coragem e da legitimidade simbólica de quem carrega uma profecia — e isso o torna crível tanto nas tendas de negociação quanto na linha de frente.
Tanya: fé, política e o custo da autoridade
No Grande Santuário, Tanya é quem sustenta o imaginário e a coesão do povo. Sua força cresce na medida em que percebe que fé e política são inseparáveis. A série acerta ao mostrar que liderança espiritual também é estratégia: decidir qual ritual fazer, que mensagem enviar, quem acolher e quem confrontar se torna tão decisivo quanto mover um exército. O preço emocional dessas escolhas aparece na forma de silêncios, dúvidas e uma solidão que acompanha quem precisa parecer infalível.
Tagon: poder, medo e imprevisibilidade
Tagon continua sendo a presença que distorce a gravidade da narrativa — todo mundo orbita em torno dele. Sua regra é o capricho temperado por inteligência tática: um tirano funcional que sabe usar violência com método quando convém, mas que também se deixa levar por impulsos que rompem pactos e acendem fogueiras. É a síntese do Estado que se mantém pelo medo.
Taealha: uma estrategista na sombra
Taealha é o motor das tramas palacianas. Ela entende processos, pessoas e timing como poucos, e a temporada a usa como catalisadora de eventos que Tagon não enxerga ou não quer enxergar. A personagem reforça a ideia de que a política de bastidores é, muitas vezes, mais eficaz do que a força bruta — principalmente quando o tabuleiro está sensível a sabotagens e alianças oportunistas.
Saya: o fator de caos
Saya ocupa a frente militar com uma mistura de astúcia e instabilidade. É uma peça que tanto amplia a capacidade bélica de Arthdal quanto ameaça a consistência das decisões estratégicas. Sua presença reforça o subtexto da temporada: em guerra, competência sem estabilidade pode ser tão perigosa quanto bravura sem plano.
Política, religião e burocracia: as engrenagens do império
Arthdal funciona porque tem rituais, legitimidades, documentos e homens e mulheres que carimbam o destino dos outros. A temporada faz questão de mostrar que a força do império não está apenas na cavalaria, mas nos escribas, contadores, ministros e funcionários intermediários que controlam recursos, decretos e narrativas. Ao lado disso, a religião é um poder paralelo que, ora coopera, ora colide com o palácio. Quando Tanya fala, a cidade escuta — e isso é tanto uma bênção quanto uma ameaça para Tagon.
Esse retrato inclina a série para um tom quase sociológico: vemos como aparelhos de Estado modulam a vida das pessoas, como propriedade e tributo garantem exércitos e como mitos fundadores servem para manter coesão quando a realidade racha.
Neanthals e alteridade: o que a fantasia diz sobre o “outro”
A mitologia dos Neanthals cumpre um papel importante: é por meio deles que a série discute diferença, perseguição e medo do desconhecido. Ainda que a 2ª temporada mantenha esse arco mais contido, a presença desse povo continua dando profundidade moral à narrativa, lembrando que o conflito não é só geopolítico, mas ético: que vidas merecem existir? Quem decide? Quais histórias são contadas e quais são apagadas?
Ação e coreografia: quando a câmera entra no campo de batalha
Se havia queixas sobre a ação dispersa da temporada inicial, aqui há um salto nítido. As sequências de combate são mais claras, os planos favorecem a leitura espacial e a coreografia encontra fluidez sem sacrificar impacto. A série ganha com batalhas mais longas, duelos contundentes e embates táticos que mostram flancos, recuos e armadilhas. A violência está presente, mas não gratuita: serve ao crescimento dramático e à demarcação de forças.
Fotografia, direção de arte e trilha: um mundo que existe de verdade
A fotografia aposta em paletas que variam conforme o território e a tensão da cena — a capital é mais petrificada e opressiva, as tribos trazem areia, terra e fogo, a natureza reaparece como força indiferente ao jogo dos humanos. A direção de arte continua robusta, com figurinos que comunicam hierarquia, crença e função. A trilha sonora acompanha as viradas com temas que valorizam a grandiosidade sem ofuscar o íntimo; é trilha de fantasia épica, mas sensível às pausas e às derrotas.
Temas: destino, identidade e o preço das escolhas
A temporada cruza três eixos temáticos com eficiência:
- Destino e livre-arbítrio: profecias movem pessoas, mas decisões cobram preço. Eunseom e Tanya carregam o fardo de serem símbolos e, por isso, qualquer gesto é lido para além da pessoa — é política e fé conjugadas.
- Identidade e pertencimento: tribos, povos e linhagens disputam memória. Unificar sem apagar diferenças é o desafio, e a série mostra os tropeços desse processo.
- Poder e violência: Tagon representa a violência institucionalizada, Taealha o cálculo silencioso, enquanto as tribos oscilam entre a autodefesa e o desespero. Ninguém está imune à culpa, e a vitória raramente é limpa.
Pontos fortes: onde a temporada acerta em cheio
- Ritmo mais ágil: os 12 episódios evitam dispersão e potencializam o engajamento.
- Ação bem filmada: coreografia, montagem e clareza espacial elevam o nível dos confrontos.
- Arcos coerentes dos protagonistas: Eunseom assume liderança, Tanya consolida o sagrado como força política, Tagon duplica a ameaça.
- Mundo consistente: burocracia, religião e mitologia se integram ao conflito principal, sem parecerem acessórios.
Pontos fracos: atalhos e um final que divide
- Conveniências de roteiro: eventos decisivos às vezes dependem de coincidências ou de personagens agindo de forma ilógica.
- Resoluções apressadas: algumas tramas correm para encerrar linhas narrativas; outras ficam ignoradas.
- Desfecho insatisfatório: a temporada fecha mirando uma possível 3ª parte, mas deixa pouca catarse para quem aguardava um encerramento mais redondo.
Essas arestas não desmontam a temporada, mas impedem que ela alcance o patamar de obra-prima que seu universo e sua ambição acenam desde a estreia.
Comparações úteis: onde Arthdal se diferencia
No cenário das fantasias disponíveis no Brasil, é natural comparar Crônicas de Arthdal com títulos como A Casa do Dragão (Max), The Witcher (Netflix), A Roda do Tempo (Prime Video) e O Senhor dos Anéis: Os Anéis de Poder (Prime Video). A principal diferença é que Arthdal não se ancora em uma franquia literária globalmente consolidada; seu mundo é original, com mitos próprios e uma estética asiática que foge do eurocentrismo comum ao gênero. Isso confere frescor e, ao mesmo tempo, um desafio: construir regras, passado e símbolos do zero sem sobrecarregar o espectador. A 2ª temporada mostra que a série aprendeu a dosar exposição e ação melhor do que antes.
Para quem é esta temporada
- Para quem curte fantasia épica com foco em guerra e política.
- Para quem valoriza mundos originais, com cosmologias próprias.
- Para quem gosta de personagens ambíguos, que erram e aprendem sob pressão.
- Para quem se decepcionou com o ritmo da 1ª temporada e quer ver mais ação e menos dispersão.
Se você se enquadra nesses perfis, a 2ª temporada tem muito a oferecer — mesmo com os tropeços.
O veredito: um passo à frente, com ressalvas
Crônicas de Arthdal – 2ª temporada consolida a série como uma das propostas mais audaciosas da fantasia televisiva recente. A combinação de ritmo acelerado, batalhas mais contundentes, protagonistas amadurecidos e tensões políticas afiadas rende uma experiência envolvente. Em contrapartida, a persistência de atalhos dramáticos e um final que mais prepara do que conclui deixam um gosto agridoce. Se houver uma 3ª temporada, o terreno está fértil; se não houver, faltou uma volta de honra para quem marchou por tantos episódios.
Conclusão: por que a 2ª temporada vale o play
Mesmo com falhas reconhecíveis, a nova safra de episódios entrega entretenimento sólido, sequências de ação memoráveis e personagens que importam. É uma evolução clara frente à estreia e, sobretudo, um lembrete de que a boa fantasia não depende apenas de dragões e grandes reinos: depende de ideias, de conflitos morais e de decisões que ferem. Arthdal tem tudo isso. E, quando a série encontra equilíbrio entre sua mitologia e sua dramaturgia, surge a versão mais potente do que ela prometeu ser lá atrás — uma fantasia coreana, épica e particular, que não quer ser cópia de nada.
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