Matéria Escura

Crítica da 1ª temporada de Matéria Escura – Uma ficção científica instigante da Apple TV+

A nova aposta da Apple em ficção científica

Entre todos os serviços de streaming, poucos abraçaram a ficção científica com tanto entusiasmo quanto a Apple TV+. A plataforma já provou seu talento para o gênero com séries de peso como Ruptura (Severance) e Silo, que conquistaram público e crítica com suas tramas densas e cheias de mistério. Mas nem tudo o que brilha é ouro: produções como Foundation e See mostraram que a Apple também tropeça de vez em quando nesse terreno ambicioso. Nesse contexto, Matéria Escura surge como mais uma tentativa de consolidar a marca no gênero — e, embora seja uma boa adaptação, não consegue escapar completamente de alguns tropeços de ritmo e estrutura.

Baseada no livro homônimo de Blake Crouch, a série adapta o aclamado romance de ficção científica com bastante fidelidade, mas acaba caindo em um velho problema: a sensação de que há episódios demais para o conteúdo que realmente importa. Ao longo de seus nove capítulos, a trama poderia facilmente ter sido condensada em uma história mais enxuta e intensa — talvez um filme de duas horas tivesse capturado melhor o impacto do material original.

Um mergulho no multiverso e na mente humana

A história acompanha Jason Dessen, um professor de física e homem de família que vive uma vida aparentemente comum. Tudo muda quando, em uma noite qualquer, ele é sequestrado por um homem mascarado e drogado. Ao despertar, Jason descobre que está em um mundo completamente diferente — um universo alternativo em que ele nunca se casou, não teve filhos e, em vez de seguir a carreira acadêmica, se tornou um cientista renomado por uma descoberta revolucionária.

O que Jason logo percebe é ainda mais perturbador: seu sequestrador é, na verdade, uma versão alternativa dele mesmo. A partir daí, Matéria Escura mergulha de cabeça na exploração do multiverso, colocando duas versões do mesmo homem em rota de colisão enquanto cada uma tenta reivindicar a vida que acredita merecer.

Essa premissa, que combina ficção científica com um forte drama psicológico, é o grande trunfo da série. A adaptação consegue manter boa parte da essência do livro, especialmente o questionamento central: até que ponto nossas escolhas definem quem somos? Em meio a viagens dimensionais, universos paralelos e dilemas morais, Matéria Escura propõe uma reflexão sobre identidade, arrependimento e a eterna tentação de imaginar “como seria se”.

Fidelidade ao livro e ritmo desigual

Blake Crouch é conhecido por histórias que misturam ciência e emoção em doses equilibradas. No livro, o ritmo é ágil, a escrita é direta e a narrativa te prende com reviravoltas rápidas e intensas. A série, porém, perde um pouco dessa energia. Embora mantenha a fidelidade ao enredo, o formato estendido faz com que muitas passagens pareçam alongadas além do necessário.

Cada episódio tem cerca de cinquenta minutos, e nem todos justificam esse tempo de tela. Há momentos em que as explorações de universos paralelos são fascinantes, mas em outros, soam como puro enchimento, sem acrescentar muito ao arco principal. A sensação é de que Matéria Escura queria ser uma grande jornada existencial, mas às vezes se prende demais à estrutura de série, sacrificando o impacto que o livro alcança com mais concisão.

Uma edição mais rigorosa teria feito maravilhas aqui. Há sequências visualmente interessantes, mas que não impulsionam a história. Essa falta de ritmo pode afastar alguns espectadores menos pacientes, especialmente porque a série se leva muito a sério — e o tema do multiverso, convenhamos, já começa a dar sinais de saturação no entretenimento atual.

O peso da saturação do multiverso

A essa altura, o conceito de multiverso já é quase onipresente na cultura pop. Entre as produções da Marvel, o premiado Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo e até as animações do Aranhaverso, o público já se acostumou com realidades alternativas e versões diferentes dos mesmos personagens. Nesse cenário, Matéria Escura chega em um momento em que o fascínio por universos paralelos começa a esbarrar na fadiga.

A série da Apple TV+ tenta se destacar ao tratar o multiverso de forma mais intimista, focando menos em batalhas ou paradoxos e mais no impacto psicológico de se deparar com versões alternativas de si mesmo. Ainda assim, é inevitável sentir que o terreno já foi explorado por outras produções — algumas delas com mais ousadia e frescor.

O mérito de Matéria Escura é tentar resgatar o sentido filosófico por trás do conceito. O multiverso aqui não é apenas um truque narrativo, mas um espelho para examinar o arrependimento, a ambição e a inevitabilidade das escolhas humanas. É uma abordagem mais contida e emocional, que faz a série valer a pena, mesmo que o ritmo nem sempre colabore.

Atuações que elevam o material

Se a trama em si tem altos e baixos, o elenco compensa boa parte dessas falhas. Joel Edgerton, no papel de Jason, entrega uma performance sólida e cheia de nuances, equilibrando desespero, confusão e determinação de maneira convincente. Ele carrega a série nas costas, especialmente nas partes mais introspectivas, quando o roteiro exige que ele interprete duas versões diferentes do mesmo homem.

Jennifer Connelly, que vive Daniela, a esposa de Jason, também merece destaque. Sua atuação dá profundidade emocional à narrativa, lembrando o público do que realmente está em jogo: o amor, a família e o desejo de recuperar uma vida perdida. Mesmo com pouco tempo de tela em alguns episódios, Connelly consegue transmitir a dor e a dúvida de quem vê o mundo desmoronar à sua volta.

As interações entre Edgerton e Connelly são o coração da série. É nelas que Matéria Escura encontra sua humanidade — o contraponto emocional ao seu conceito científico. O elenco de apoio cumpre bem o papel, mas é na química dos protagonistas que a produção realmente encontra força.

A estética e o clima da série

Visualmente, Matéria Escura é impecável, como já se tornou marca registrada da Apple TV+. A fotografia aposta em tons frios e iluminação difusa para reforçar o clima de incerteza e duplicidade. O design de produção também é de alto nível, especialmente nas cenas ambientadas em laboratórios e nos universos alternativos, onde cada detalhe ajuda a diferenciar as realidades.

A trilha sonora discreta, mas eficiente, cria tensão sem ser invasiva, e a direção acerta ao privilegiar planos longos e silenciosos, que aumentam o desconforto e a sensação de deslocamento do protagonista. É uma série visualmente elegante, que demonstra cuidado estético mesmo quando o roteiro tropeça.

O problema da duração e da estrutura

Embora Matéria Escura tenha apenas nove episódios, a série dá a impressão de ser mais longa do que realmente é. Isso ocorre porque a narrativa demora para avançar — algo que poderia ser resolvido com uma estrutura mais condensada. Certas passagens, como os longos períodos em mundos alternativos que não afetam o enredo principal, acabam quebrando o ritmo.

Essa dilatação não seria um problema tão grave se o desenvolvimento dos personagens acompanhasse o tempo de tela, mas nem sempre é o caso. Jason e Ryan, por exemplo, são retratados como mentes científicas brilhantes, mas em alguns momentos suas decisões soam forçadas ou incoerentes, servindo apenas para mover o enredo.

Apesar disso, há mérito em como a série tenta equilibrar ação e introspecção. O problema é que a execução nem sempre entrega o mesmo impacto emocional do livro, onde o leitor é arrastado por um fluxo ininterrupto de tensão e descoberta.

Um bom entretenimento, mas longe do excepcional

Comparada a outras produções da Apple TV+, Matéria Escura fica em um meio-termo. Não tem o frescor e a genialidade de Ruptura, nem o suspense meticulosamente construído de Silo, mas também está longe de ser um fracasso. É uma série competente, visualmente cativante e com um conceito instigante, mesmo que um pouco desgastado.

Seu maior mérito talvez seja o de conseguir tornar compreensível um tema complexo, sem se perder em tecnicismos ou jargões científicos. Mesmo quem não é fã de ficção científica pesada consegue acompanhar a trama, o que a torna mais acessível do que outras produções do gênero.

O final, embora previsível, entrega uma conclusão satisfatória e emocional, fechando o arco de Jason de forma coerente. Ainda assim, a sensação é de que a série poderia ter ido além — especialmente considerando o potencial do material de origem.

Conclusão: uma boa série que fica aquém do seu potencial

Matéria Escura é uma boa adição ao catálogo da Apple TV+, especialmente para quem gosta de ficção científica que desafia o espectador a pensar. A série tem um ótimo ponto de partida, atuações sólidas e um visual de alto padrão. No entanto, sofre com o ritmo arrastado, a falta de foco em alguns episódios e a saturação do tema do multiverso no entretenimento atual.

Apesar desses problemas, a produção ainda consegue se destacar por seu tom emocional e pelas reflexões que propõe sobre identidade, escolhas e destino. É o tipo de série que não revoluciona o gênero, mas oferece uma experiência intrigante o suficiente para prender o público até o fim.

No fim das contas, Matéria Escura cumpre o que promete: uma ficção científica decente, bem produzida e envolvente, que, mesmo sem ser brilhante, reforça o compromisso da Apple TV+ com histórias que combinam tecnologia, emoção e humanidade.

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